domingo, 3 de abril de 2016

CIDADE DOS SONHOS (Mulholland Drive, 2001)


DAVID LYNCH PROPÕE AO ESPECTADOR UM JOGO... E QUEM O JOGA TEM UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL.

país produtor: Estados Unidos da América, França // direção e roteiro: David Lynch // elenco: Naomi Watts, Laura Harring, Justin Theroux

sinopse: Uma misteriosa morena com amnésia (Laura Harring) se esconde em um apartamento vazio até ser descoberta por uma jovem atriz (Naomi Watts) recém chegada a Los Angeles. Ela não sabe o seu nome, mas ao ver um cartaz de um filme estrelado por Rita Hayworth, se autonomeia Rita. Já Betty, às voltas com seus sonhos de se tornar uma atriz famosa, resolve ajudá-la, sem nem mesmo imaginar que essa jornada irá revelar fortes laços que as unem.

Metascore: 81 (from metacritic.com)

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Cidade dos Sonhos seria originalmente uma nova série televisiva de Lynch, autor em 1990 de um título que foi um divisor de águas na TV americana: Twin Peaks. Porém, a produtora abandonou o projeto e o cineasta, com o apoio do Canal Plus (França), realizou essa grande obra surrealista, que arrebatou elogios, colecionou prêmios e foi, inclusive, indicado ao Oscar de melhor diretor em 2002.

Não é um filme fácil. É preciso despreendimento do espectador para acompanhar a trama que, mesmo tendo um claro fio narrativo, por vezes investe em um clima de sonho, suspensão da realidade e flashbacks desconectados que pode irritar e desorientar. Por isso, vale aqui ressaltar a importância da grande atuação de Naomi Watts, que ajuda com sua beleza e entrega, a sustentar a atenção da plateia nessa difícil jornada que o seu personagem inicia.

A partir daqui, tentarei fazer uma análise sobre o que entendi do filme após a segunda vez que o apreciei. Na primeira, no cinema, entendi muito pouco, apesar de ter gostado muito do que vi. Aviso importante: o texto a seguir contém diversos spoilers.

No meu modo de ver Cidade dos Sonhos é um filme sobre a morte e a busca de duas mulheres, em uma espécie de limbo, pela verdade do que elas eram em vida e as circunstâncias que envolveram o seu trágico fim.

E quem são essas mulheres? Ou melhor, como o filme nos apresenta elas nas primeiras cenas? É importante analisar isso.

Primeiro somos apresentados a Rita, envolvida em um acidente inesperado em Mulholland Drive (estrada famosa de Los Angeles) e que, desorientada, se esconde em um apartamento. Lá ela adormece e sonha cenas desconexas, onde não está presente. Vemos telefones tocando, mafiosos atendendo e falando coisas do tipo "ela continua desaparecida". Há também uma memorável cena de um homem desmaiando ao ver uma criatura horripilante. A essa altura o espectador desavisado deve estar se perguntando "que diabos é isso"... Pois é, isso é David Lynch.

Em seguida surge em cena Betty, personagem de Watts, que se mostra linda, feminina, talentosa e sorridente ao chegar em Los Angeles. Seu desejo: ser uma atriz reconhecida, brilhar em Hollywood.

O contraponto entre essas duas personagens se estabelece quando elas se encontram no apartamento cedido pela tia de Betty, onde Rita se escondeu. Rita está desmemoriada, frágil. Já Betty, repleta de atitude e coragem, resolve ajuda-la, motivada por um sentimento de proteção que, mais tarde, entenderemos ser de remorso, oriundo de quando elas eram íntimas, em vida. No entanto, nesse início de filme, Betty e Rita nada sabem sobre isso. Estão em processo de autoconhecimento, vivendo hora um sonho dentro de um sonho (Rita), hora na irrealidade, na pura fantasia (Betty).



Esses dois estados, fantasia e sonho, não são muito claros para o espectador. Em diversos momentos, não sabemos onde termina um e começa o outro. Não sabemos nem mesmo se há algo de "real" no que os personagens estão vivendo em tela. Acho isso encantador nesse filme, por não querer e nem se atrever a nos dar respostas prontas.

O filme avança. Há uma linha narrativa que centra na busca de ambas sobre quem é Rita. Há também a busca de Betty pelo reconhecimento como atriz, que faz um teste de elenco bem sucedido. Há ainda os sonhos - ou memórias? - de Rita, em que conhecemos melhor outros personagens do filme e, em especial, Adam Kesher, um diretor pressionado pelos produtores a escalar uma atriz em seu próximo filme. Esse personagem é peça chave na conexão, em vida, entre Betty e Rita.

A busca de ambas pelo passado de Rita culmina com a ida ao Club Silêncio. É o momento mais grandioso do filme. As palavras proferidas no palco do clube “Não há banda. É só uma gravação. É uma ilusão” são direcionadas não só para as personagens, mas para nós espectadores. Ainda no clube, dentro de sua bolsa, Betty encontra um cubo azul. O rosto das duas diante desse cubo denota não só surpresa, mas medo do que pode estar por revelar-se. Elas levam o cubo ao apartamento, o cubo é aberto com uma chave que simboliza a morte e ambas, surpreendentemente, somem do quarto. A tia de Betty, que vimos no início do filme carregando as malas para uma viagem, abre a porta do quarto. Ela nada encontra, apesar de ter sentido a presença de algo estranho. Será que ela viajou mesmo ou sempre esteve presente naquele apartamento?

A partir daí o filme dá uma guinada e um nó na cabeça do espectador. Somos apresentados à Betty real, com dentes sujos, trejeitos masculinos, sem maquiagem, morando em uma casa escura, suja e feia. Descobrimos ainda algo surpreendente: ela é a mulher morta que apareceu em uma dramática cena anterior, antes da ida ao Club Silêncio.

E Rita, quem é Rita realmente? Dominadora, manipuladora e maldosa, ela é amante ocasional de Betty e está noiva de Adam, o diretor de cinema.

Betty sente que está sendo deixada para trás, sente que é, no fundo, uma fracassada. Nasce então nela o desejo de matar Rita. O plano é executado com a ajuda de um bandido pé de chinelo. Mas Betty, atormentada pelo remorso e pelos sonhos e lembranças com Rita, se suicida.

Ou seja, temos aqui uma história aparentemente comum envolvendo um triângulo amoroso, traição, vingança e tragédia, só que contada de uma forma subvertida, simbólica e muito inteligente. Com ecos de filmes noir, críticas à leviandade artística da sub-hollywood e cenas de lesbianismo sensacionais, Cidade dos Sonhos é a obra-prima inesperada de David Lynch, esse cineasta tão ímpar, tão outsider.

Cineasta esse com uma filmografia repleta de obras onde o surrealismo se faz presente, sempre de uma forma respeitosa à tradição iniciada por Buñuel, mas também com um caráter muito particular, onde a subversão da narrativa tradicional ao mesmo tempo que afasta um certo tipo de público, o aproxima de outro, mais acostumado a filmes artísticos e sensitivos, que não se preocupam com o entretenimento em primeiro lugar.

Seja como for, eu me divirto muito toda vez que vejo esse filme, pois ele é como um livro com diversas páginas em branco, onde cada espectador é convidado a preenchê-las. E toda vez que revejo Cidade dos Sonhos as páginas são preenchidas com algo novo.

Lembro-me que a repercussão à época do lançamento de Cidade dos Sonhos foi muito grande, com muitos querendo compreender essa história trágica. Não à toa, é possível encontrar na internet muitas outras interpretações, desde aqueles tempos. Felizmente, não há um caminho certo a seguir ao ver esse filme, por isso o meu conselho é que se você for assisti-lo, vá de mente aberta e depois chegue a suas próprias conclusões, que podem ser bem diferentes das minhas.

Visto em 2002 no Espaço Unibanco de Cinema. Revisto desde então por 3 vezes em DVD e, em 2014, no Netflix.


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